sábado, dezembro 23, 2017

ACONTECEU NO NATAL II – A BOLA PRETA E MEU VIZINHO DE BENGUELA


A pedidos.
Quando estava saindo da infância, lá na longínqua Benguela, minha cidade natal de tantas lembranças, tínhamos por hábito sair para a rua, manhã cedo do dia 25, o de Natal, com nossos brinquedos novos e ao mesmo tempo que curtíamos, os mostrávamos para os vizinhos das casas à volta. Na época do fato que vou contar, eu já não acreditava mais em Papai Noel ou pai Natal como se diz lá, mas se mantinha a tradição de não se abrir os presentes na noite de 24. Se passava toda a agonia e expectativa da noite de 24 durante a consoada e festejos familiares, íamos à missa do Galo à meia noite, voltávamos, se ceava e se ia deitar sem os presentes nos sapatos debaixo da árvore de Natal, o popular pinheirinho daqui. Só ao acordar na manhã de 25 se achavam os presentes em cima do sapatinho de cada um. Pelo menos era assim na minha família, se controlava a ansiedade e se esperava que o Pai Natal descesse nas chaminés inexistentes e desnecessárias nas casas sem lareira de um clima de 40 graus em dezembro, ou por alguma janela aberta caso alguma criança se questionasse e questionasse os adultos como iria Papai Noel descer pela chaminé se além de não existir uma chaminé na sala, a da cozinha era bem estreita apenas necessária para a saída de alguma fumaça produzida pela comida.
Bom, era assim ou como a minha memória me diz que eram meus Natais em Benguela. Aquelas manhãs gostosas, onde se acordava bem cedo e logo se ia para a rua para brincar com os vizinhos. Muito bom era. Saber se o Papai Noel tinha lido cartinhas e atendido os pedidos seus e dos amigos.
Num desses últimos Natais, meu pedido era uma bola preta de borracha, com letras e logotipo pintados de amarelo. Não era uma simples bola, era a bola ideal, pois poderíamos jogar na areia da praia ela pulava e não se molhava com a água, podíamos jogar na rua, onde sempre jogávamos e também poderias jogar basquete nas calçadas as forquilhas nos troncos das acácias amarelas de cestas. E eventualmente, quase sempre, fazer o corredor da casa de quadra multiuso. Além de todas essas utilidades, ela era muito bonita. Inesquecível aquele preto forte, logo de tartaruga, nome e frases em alemão amarelas.
Infelizmente naquele ano Papai Noel não me deu meu objeto de desejo, recebi um caminhão Unimog amarelo muito lindo! Meus pais justificaram a decisão deles dizendo que eu já tinha ganho duas, e as tinha perdido, além dos vizinhos reclamarem muito que nossos disputadíssimos clássicos na rua provocavam estragos nos jardins deles, quando pulávamos os muros para recuperar a bola nos chutes sem direção e nem víamos as coitadas das flores nos canteiros dos vizinhos. Aceitei meio contrariado a justificativa, realmente tinha perdidos duas bolas desde o Natal do ano anterior. Nada a fazer! Mas o caminhão também me agradou muito.
Importante justificar como eu tinha perdido as duas minhas lindas bolas pretas alemãs compradas na Drogaria Central, com letras amarelas e logo de tartaruga. A primeira, que tinha ganho no Natal anterior, infortunadamente tinha caída nas mãos de um policial. A vizinha da frente, a para mim e por motivos negativos inesquecível Dona Zuze, tinha chamado a polícia porque ao jogarmos na frente da casa dela fazíamos muito barulho. Minha memória me diz para sempre que atrapalhamos a sesta dela, adultos disseram e tentaram me convencer que ela estava certa ao chamar a polícia porque estava doente, mas quem irá saber? Particularmente, prefiro acreditar na memória de um menino que perdeu sua companheira fiel, sua bola preta alemã, com letras amarelas e tartaruga! Ao escutar o grito “Polícia, fujam”, eu peguei a minha bola e em vez de correr para dentro de casa, pensei em fugir pela rua do outro lado porque pensei, eles vão bater na minha casa. Ledo engano, ao virar a esquina caí nas mãos de outro policial que vinha pelo outro lado, eles tinham nos cercado pelas quatro ruas do cruzamento onde morava. Tal qual um pirulito, assim ele tirou a bola da minha mão e eu estupefato, raivoso, dolorido o vi tirar um canivete enorme, cortar minha bola em duas metades, me devolver dizendo, vai lá jogar de novo! De imediato joguei os dois pedaços com força aos pés dele e corri para chorar de raiva em casa perante meus amigos que tinham saído dos seus esconderijos. Passei noites traumatizado não tanto pela visão das duas metades da minha querida bola no chão, mais pela falta que sentia dela. Além do castigo que levei em casa, esse menos traumático pois não me lembro se foi castigo ou umas reguadas de colher de pau. Ou talvez nem castigo houve, já que nem lembro. Agora, a minha bola preta alemã, com letras amarelas e tartaruga, minha companheira de 24 horas até hoje, em noites de insônia me vem na lembrança. Nunca mais vi uma bola dessas na vida, assim como nunca mais voltei às praias onde cresci, ao lugar onde nasci, à minha cidade natal. Às vezes acho que deveria ter trazido uma dessas para ter em casa, seria muito útil quando se abre aquele buraco fundo dentro do seu peito e você não sabe direito o que sente nem o que fazer e vai gritar vestido e tudo, debaixo do chuveiro. Mas refugiado não tem muitas opções para carregar nem para escolher, carrega apenas suas memórias, suas dores. Sair fugindo de uma guerra, não é opção é a última escolha. E a outra bola como eu perdi?
A outra bola preta alemã, com letras amarelas e logo de tartaruga comprada na Drogaria Central, eu ganhei meses depois, no meu aniversário. Não lembro mais quem me deu, mas o que importa é que ganhei de novo uma companheira. Com essa fui mais cauteloso já. Não jogava na rua, jogava na praia, dentro de casa ou no quintal. Só que jogar no quintal tínhamos o perigo do vizinho do lado. Se a bola fosse para a casa do lado teríamos que pular rápido, o que era dificultado pois o muro lateral era alto ou pular pelo muro frontal da casa o que demorava mais e poderia dar tempo ao vizinho aparecer de repente e ficar com a bola. Esse vizinho era uma figura muito estranha, muito fechado, taciturno. Calado, quieto, não conversava com ninguém, andava sempre vestido de preto e com um casaco grosso, pesado, coisa muito estranha para um país africano com temperaturas muito altas. Apesar de ser muito respeitado pelos adultos, essa figura era estranha e um pouco assustadora para nós. Se dizia que tinha perdido toda família num incêndio de verão em Portugal e para esquecer tinha ido para Angola. Isso justificava completamente a rigidez de expressão do rosto, a sisudez constante, a solidão dele e o fato de nunca vermos as cortinas das janelas da casa abertas. Sempre tudo muito fechado. Só o víamos muito cedo saindo para o trabalho ou tarde voltando do trabalho. Nos fins de semana nada dele. Era desse vizinho que eu tinha medo, não dele especificamente, mas de não ser rápido o suficiente ao pular o muro e ele ficar com minha segunda bola preta alemã, de letras amarelas e logo de tartaruga. Dizem que aquilo que mais tememos atraímos e acontece, e foi exatamente o que aconteceu. Um dia de semana achando que ele não estivesse em casa em vez de pular o muro lateral fui calmamente para pular o muro da frente e pular não vi mais minha bola. Ele tinha sido mais rápido e minha querida companheira tinha ficado presa e nem as cortinas das janelas se mexiam, ele tinha sido muito rápido e sutil. Nem adiantava pedir ao meu pai para bater lá e pedir, já estava cansado de fazer isso e quis me deixar de quarentena. Muito menos eu ir lá bater, tinha muito medo de receber duas metades e não a minha bola preta alemã, de letras amarelas e logo de tartaruga. O tempo foi passando, eu fui me conformando e faltando poucos meses para o Natal achei por bem esperar pela bondade do Pai Natal. Me enganei, não ganhei minha tão desejada bola e sim o caminhão Unimog que me preparava para mostrar aos vizinhos e brincar na rua.
Estou brincado na calçada quando algo me chama a atenção no quintal do vizinho do lado. O que era? A minha bola! Lá estava ela. Fiquei surpreso estático, me encostei no muro baixo não acreditando no que via. Olhando a casa no fundo do terreno vi o rosto fechado do meu vizinho estranho olhando para mim fixamente. Fique estático olhando ele sem saber o que fazer. O que me pareceu uma eternidade depois ele fez um sinal leve de rosto me indicando a bola com o queixo, me incentivando a pegá-la. Foi preciso ele repetir umas 3 vezes o gesto para eu ganhar coragem para pular o muro muito lentamente e mais lentamente ainda pegar a bola sem tirar os olhos do meu vizinho. Quando estou me levantando, sem tirar os olhos dele, com a bola nas mãos e me preparando para girar rápido e correr para a rua vejo se abrir um leve sorriso naquele rosto marcado e duro. Estático sem saber muito bem o que fazer me tocou aquele leve sorriso, me veio na mente o que se falava da dor daquele homem e muito timidamente retribui o sorriso e agradeci. Me virei muito confuso e devagar voltei par a calçada sem saber muito bem o que pensar. Meu coração disparado, minha mente confusa com o gesto amistoso e o sorriso amoroso de quem povoava meus pesadelos e nas minhas mãos a minha querida bola preta alemã, de letras amarelas e logo de tartaruga comprada na Drogaria Central. Meus ouvidos zumbiam, tinha saído muito rápido do pânico e pavor para o carinho e compreensão de quem menos esperava. Achei que ouvi até um Oh Oh Oh típico do bom velhinho, mas essa parte consigo calar aquele menino tímido e confuso daquela manhã de dia 25 que me garante a veracidade disso, lá da longínqua e amada Benguela.
Ah depois disso não virava mais a cara e fugiu quando via o vizinho ao longe. Até olhava e dissimulava um sorriso quando ele passava. E aquela bola? Essa se gastou de tanto uso e de tanto cair no quintal do vizinho!
FELIZ E SANTO NATAL!!
Nico Moreira.'.